Pequeno Prefácio do Autor

2008 é nome da obra em que me insiro num universo da passionalidade ficcional.
Não sei se ao leitor agradará o ritmo e os recortes ou os possíveis surgimentos, sei sim que entre a verdade e aquilo que inventamos há um universo inteiro: é nesse universo que estamos no ano de 2008.
Prefaciando cada capítulo meu, encontro Waldo Motta, poeta dominador de almas que é.

O último capítulo Réquiem está na barra acima por um motivo último.
Os capítulos são interdependentes podendo ser acompanhados sem ordem ou pela ordem do leitor.

Classificação etária: maiores de 16 anos.

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domingo, 29 de março de 2009

Rio de Janeiro X

Se há algo que o pequeno mais admira em si: é se tornar fraterno aos inimigos.

Nenhum inimigo era tão potente que pudesse lhe render? Aos braços, talvez.
Acontece que a amiga chegara tarde. O vinho foi bebido só. E o pequeno, tanto se divertia quanto lamentava alguém poder ser tão cruel.

Ao chegar, a amiga agradeceu muitíssimo e pediu para que o nosso personagem voltasse no dia seguinte. Bem cedo, para não deixar o coitado com fome ou desespero. Era a hora de os dois terem seu momento fraterno. O pequeno tinha bom-senso. A garrafa já estava vazia. Andou pelo centro do Rio naquela noite bem lentamente. Passou por becos, cruz vermelha, tudo lento e reconfortante: tinha cumprido sua primeira parte da missão. E saíra, ao que tudo indicava, muito bem.

No outro dia, bem disposto: voltara. Quem atendeu foi o ranzinza. Chamarei por vários nomes, de fato. Porque muitas vezes, depois da paixão, tentou até se tornar um cavalheiro. Coisa risível. O que ele era, na verdade: o que se tornou: o mensageiro.

Logo saberemos o por quê. Agora o rosto de quem acabara de acordar. A amiga ainda não saíra para o trabalho mas deixou inúmeras tarefas. Limpar a casa inclusive. No que o pequeno consentia.

- Fazer comida eu só sei miojo ou enlatado.

- Viu? Eu disse que essa bicha não iria me ajudar em nada!?

Faz parte do treinamento voluntário e fincou os pés.

- Só não fumem mais aqui. Tô saindo, cuida dele direitinho. Fuma aqui, na porta do apê, tá? Meu queridinho...

O ranzinza pediu por comida. O pequeno, vendo que não havia nada em lugar nenhum, desceu novamente do prédio e comprou alguma coisa pra se fazer rápido. Talvez pães, se a memória não me falha. O ranzinza, cumprindo o seu papel, fez cara de nojo.

- E além do mais, você precisa sair. Talvez hoje você ainda não queira...

- Não ando no sol e não trouxe protetor.

- Ok.

Não saíram. O dia como sempre lindo. A cidade sempre em festa: eram os ossos da bondade.

Logo para cutucar o ranzinza foi desferindo seus golpes:

- Você não deve ser tão bonzinho assim.

- E você não deveria ser tão grosseiro.

Na verdade, o tal grosseiro estava era assustado. Na noite anterior, mal o pequeno saíra e ele comentara com a amiga se rindo e se gabando: dúvida que ele seja tão bom assim como você me falou no telefone e como você o defende agora! Quer saber? Amanhã, ele não volta.

O pequeno preparou a comida, no que o grosseiro comeu. O pequeno até colocou suas roupas para lavar e depois de lavadas foi pendurando pra secar. Mas tinha que ser exatamente do jeito que o ranziza queria: a roupa deve ficar assim! no varal! Tá vendo, você não sabe fazer nada! Você não sabe de nada, sabia?

O pequeno calado.

O ranzinza, à medida das horas, ficava mais perturbardo.

- A amiga volta para o almoço?

- Talvez não. Ela trabalha o dia inteiro.

- Você saiu muito tarde ontem daqui. Não teve medo.

- Talvez não...

- Tu és muito burro mesmo!

Como e de onde surgia paciência, meu pequeno. Vinha daquela santidade, lembram-se, ao retornar do sul. Além do quê, o humano à sua frente só não sabe que não precisa ser assim. Ninguém deve ter ensinado isso pra ele. Coitado.

- Sou formado em antropologia, sabia?

- Eu sou em artes.

- Dava pra ver.

- E o sexo? Como tu faz?

- Eu não faço.

Mais uma vez as contradições: embora fosse ranzinza era um gay caçador, não saía aos lugares gays, caçava entre os andantes paulistas. Coisa quase de enrustido. Era o seu jeito, fazer o quê. As bichas o deprimiam, faziam-no muito menor do que seu ego já concebia. Teve uma vida difícil, o ranzinza, aprendera a ser macho a base de pancada.

Coitado. Pensava o pequeno com verdadeiro amor fraterno.

- Tu me acha bonito?

- Bem, deve ser.

- Como: "deve ser"?

Gostava de imitar o jeito do pequeno.

- Deve ser, porque você está todo marcado e não dá pra perceber ainda.

De fato, com o tempo, mais o seu rosto de Jonny Deep surgia e os cabelos negros e a pele branca, não poderiam mesmo pegar sol carioca.

- Não faz nem um dia que nos conhecemos e eu estou irritado contigo.

- Tudo te irrita.

- Eu sinceramente achava que tu não fosse aparecer.

- Eu dei minha palavra.

- E sempre cumpre?

- Claro que sim. Quem não cumpre.

O ranzinza gargalhou.

- Tu é muito ingênuo e chega a ser ridículo. O que tu fez a vida inteira?

Sofri, pensou. Mas não disse:

- Vivi.

- Tu és burro, sabia?

- Eu não posso e nunca devo responder com ironia. Eu sei bem como ser irônico, sei, sim eu sei, sei como ser cruel também, mas decidir não sê-lo. Não é com a minha ironia ou com sarcasmo que se prova inteligência, isso é dos fracos.

O ranzinza calou. Admirou bem a peça que, pela primeira vez, dava provas de si. Talvez ali, naquele momento, foi que se apaixonara. Talvez ali, com aquela frase, foi que o pequeno percebera que não estava tão só. Havia um monstro de verdade em sua frente. Riu.

- Por que você está rindo. Eu já te peguei rindo várias vezes sozinho! Sem nada pra rir!

- Eu gosto de rir. Gosto por gostar, ué? É como fazer este gesto no ar... ou coçar o nariz.

- Patético, viu?

- Vi, vi também que pelo jeito amanhã você já estará melhor e poderemos dar uma volta. O Rio não é tão perigoso como eles dizem.

- Não é por isso que eu não saio! Tá vendo como você é burro?!

- De qualquer maneira você precisa de companhia, não, para ir ao médico, não foi por isso que veio? Por que tens que ver isso aí do seu braço.

- Eu não entendo como alguém que veio do sul fala "você"?

- Você veio do sul.

- Nossa amiga é do sul e foi lá que a conheci. Sou bem do sul mesmo, interior. E daí?

Quase escapuliu que era notório que viesse do interior. Mas o nosso pequeno continuava sempre o mesmo.

- Nasci no centro-oeste. Minha vida foi no sul. Ou parte dela. Idas e vindas. Sabe? Até que cheguei aqui e estou contigo e podemos passar uma tarde melhor ou não.

- "Nasci no centro-oeste. Minha vida foi no sul. Ou parte dela. Idas e vindas. Sabe? Até que cheguei aqui e estou contigo e podemos passar uma tarde melhor ou não."

- Você não pode ficar me imitando sempre. Fica chato.

- "Você não pode ficar me imitando sempre. Fica chato." Eu sou chato! Quero ver você desistir de mim.

- Bem, estou indo. De verdade, eu preciso trabalhar a tarde. Mas volto...

- E a roupa? Nem secou ainda?

- Vai secar, você vai ver. Tudo seca rápido nos braços de cristo.

Ele apertou a mão do ranzinza carinhosamente, ainda olhou-o com certo cuidado no rosto. Fez uma cara de enfermeira e saiu. Era verdade mesmo: trabalhava das 12 às 18, ou até as 17, se quisesse assim. Um trabalho muito bom, diga-se de passagem.

Deixara o rapaz aflito.

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